ygor g. sena
estudante de arquitetura da fauusp em busca de uma abordagem holística para interpretar e intervir no espaço da vida humana
Escrita Criativa
Nesta página se encontram os contos, crônicas, poesias e haicais mais recentes sobre memória, espaço e percepção:
Irrigar o esquecimento, 2020
“E se eu batesse de frente com o metrô?”, pensei.
Estava parado diante da plataforma quando fui acometido por tal ideia. Sedutora para o dia que se foi; enevoado, escuro e cinzento tal qual as austeras plataformas de embarque desta cidade paranoica. Não seria de todo ruim, veja, pois o ambiente se apresentava de forma propícia para tal acontecimento. Poucos milímetros separavam meu corpo do desnível de cento e vinte metros por onde corriam dezenas de trilhos, abrigados por túneis e coberturas, a conectarem pontos estratégicos da metrópole.
Em pé, naquele instante, já não havia qualquer ligação entre eu e o mundo
.
A brisa começou a me seduzir, de um suave assopro em harmonia com um som brando, quase marítimo, harmoniosos; ambos progrediram até o ponto de se tornarem insuportáveis e, de súbito, silenciosos. Os milésimos de segundos em que a corrente de ar e o ruído crescente cessaram foram instantes de hesitação, ao que se seguiu uma súbita rajada de vento em par com o tilintar frenético das rodas dos vagões, os quais me fizeram instintivamente dar três passos para trás e respirar fundo, de maneira ofegante. Eu tinha perdido o embarque para uma viagem sem volta.
Meu querido meu querido
Absorto em meus pensamentos, talvez tivesse recuado por ouvir alguém chamar minha atenção – uma fantasmagoria? Na verdade, meus ouvidos buscavam pelo som do violão e reparei que atrás de mim, sentado, um jovem cantava com seu instrumento:
Segues-te comigo
em todos os meus dias
No segredo lastimo
por tua energia
de repente
sem adeus
e nem abraços
me ver carente
ao teu retrato
Ah doce ilusão
pois mesmo estrelas
um dia serão
outra vez pequenas...
Deixei uma generosa gorjeta para o menino, perguntei se ele próprio havia composto a música e acenou euforicamente que sim, também em agradecimento à minha caridade. Para quem é, perguntei. Para minha mãe, respondeu.
O alarme soa e a portas se fecham. O metrô se perde pelo breu do túnel, indiferente como a linha do tempo, de minha vida, com seus rastros esquecidos pelo caminho. Não via minha mãe há muito tempo. Depois de tudo o se seguiu desde então, talvez fosse enfim o momento de bater de frente com ela – comigo mesmo.