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Escrita Criativa

Nesta página se encontram os contos, crônicas, poesias e haicais mais recentes sobre memória, espaço e percepção:

Eu era um chapéu, 2020

 

Eu era um chapéu. Cumpria minha função com diligência em proteger e dignificar a cabeça daquele que me vestisse. Em troca, tinha acesso aos seus pensamentos. Era pouco utilizado, porém. Não me recordo de ter sido vestido por quem me comprou ou sequer como passei a morar neste cabideiro, salvo uma ocasião.

Houve um dia quando muitas crianças vieram brincar na sala onde fico e, por travessura de uma delas, acabei tornando-me o centro das atenções. O primeiro que me colocou em sua pequena cabeça ajustou a folga com sua imaginação, assim como tantos outros: fui um capitão de navio, ostentando o seu brasão e liderança; uma modelo de boina charmosa a desfilar nas passarelas de Paris; exerci o papel de um homem da alta sociedade, com elegância, típico de uma cartola; liderei um movimento feminista, me vi como alguém clochê, versátil, glamorosa, e independente; protegi um pesquisador de longas chuvas nas florestas tropicais; percorri os cinco continentes, de índole tão aventureira quanto um safari; compareci em festa de formatura, digno de um capelo; roubei dos ricos para dar aos pobres, atos tão livres quanto um píleo...

Fui coisas tantas em múltiplas épocas. De volta ao cabideiro, voltei a minha função de panamá, multiuso, para todas as ocasiões. Mas isto é uma coisa.

Eu era um chapéu. Agora, não mais. Para os outros, mesmo para meus colegas, talvez um chapéu seja tudo aquilo que evoca – chapéus.

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